Por que “Let’s Groove” ainda parece mágico: Uma análise do funk atemporal de Earth, Wind & Fire
Pessoas vêm, pessoas vão. O grande Maurice White veio, se foi e deixou tanta alegria para trás que é importante olhar seriamente para o seu trabalho. Ele criou Earth, Wind And Fire, o epítome do groove e da felicidade gravados em vinil e fita cassete, a maior e mais divertida banda do final dos anos 70.
Pensei que seria uma boa ideia examinar de perto uma das faixas mais simples e ao mesmo tempo mais famosas da banda: Let’s Groove
Nome apropriado, não é? (A versão do YouTube soa ruim como sempre, mas o vídeo é tão perfeito que vale a pena assistir mesmo assim).
Ouça no Spotify ou, melhor ainda, compre no iTunes. Compre só essa faixa, porém — o disco “Raise!” não vale necessariamente a pena, exceto pela incrivelmente à frente do seu tempo Kalimba tree de 26 segundos. Se você estiver procurando estocar álbuns de EW&F, eu recomendo “I Am” e “All and All” em vez disso.

Certo, então o que há de tão especial em Let’s Groove?
Primeiro, já que fazer é muito mais difícil do que falar, desafio você a escrever um groove de dois compassos que seja bom o suficiente para tocar sem parar por 5 minutos e 39 segundos sem ficar chato. Me mande um postal quando conseguir.
2 compassos. É isso. A música inteira se baseia em um simples arpejo em Mi menor repetido ad libitum em diferentes cores. Parece-me que um jam virou canção quando eles trombaram com essa joia.
Algo me diz que a letra não demorou muito para ser escrita depois disso. Mas essa música não é sobre a letra — é sobre mexer o traseiro. Sabe o que quero dizer? Gosto particularmente da linha profundamente reflexiva “Let you know girl you're looking good, you're out of sight and alright.” Ela estava tanto out of sight quanto alright. Um bom motivo para dançar, na minha opinião.
Análise da faixa
Como eles arranjaram esses dois compassos? Bem, há uma bateria, um baixo de synth (adoro o sorriso do baixista fingindo tocar a parte no vídeo), um Rhodes, algumas overdubs malucas de tom/cowbell/shaker, palmas estéreo, 2 seções de metais, alguns synths, algumas partes de vocoder, uma guitarra rítmica, alguns efeitos especiais de synth selvagens e muitas e muitas vozes. Não esqueçamos que isso foi gravado em fita, sem função de copiar/colar, sem afinação automática, sem edição de groove, e lembremos também que eles só tinham no máximo 24 trilhas. Fascinante, não?
A bateria
Seca, alta e guiada pelo pocket
A bateria, tocada ao longo da faixa, soa seca e alta. No mix, é principalmente o bumbo. É difícil dizer como a caixa soa por causa de todo o resto que bate nos tempos 2 e 4 (você meio que consegue ter uma ideia do som da caixa nos pequenos fills a cada poucos compassos), mas eu acho que é uma piccola. Ou alguma afinação super justa de um tambor raso.
O ataque brilhante do bumbo
Vamos usar a introdução para analisar o bumbo porque, uma vez que o baixo entra, fica difícil saber quem faz o quê: ouça esse ponto/ataque. Brilhante pra caramba, não é? Isso porque o baixo ocupa todo o espaço depois na música, então eles empurraram o bumbo para frente fazendo-o ‘clack’. Ainda assim é encorpado para a época e, se você ouvir várias faixas daquela era (ou mesmo faixas do mesmo disco), esta é particularmente pesada. Muita atenção foi dada a isso.
Como provavelmente gravaram o kit
É difícil dizer, mas acho que gravaram o kit numa única trilha, ou talvez em duas trilhas — bumbo e caixa — com o baterista apenas mantendo o pocket e fazendo fills de caixa. Sem tons, sem pratos. E acho que conseguiram a largura estéreo sobregravando pratos, percussões e talvez palmas em estéreo depois. Provavelmente numa única passagem.
O infame tom + cowbell no lado direito
Isso explicaria por que aquele overdub de tom no tempo 1 é tão alto quando todo o resto é tão lapidado. Eles fizeram, ficaram com aquilo. Só um palpite. Ouça o lado direito da música. Há aquele tom acertando o tempo 1 seguido por um cowbell no 2, 3 e 4. Pan totalmente à direita. Ouve? Aquele é um tom alto com um bump sério em torno de 200Hz, não é? Você teria deixado assim?
Palmas reais com gated reverb
As palmas são fundamentais para a sensação estéreo da música, com uma cauda séria de gated reverb nelas. Repare na cor e no tempo do reverb. Legal, né? Pode ter sido um AMS que saiu naquele ano. EW&F eram enormes, podiam bancar os brinquedos mais recentes.
Por que palmas reais groovam mais
A propósito, na época, a forma de fazer esse tipo de palmas era colocar um monte de gente numa sala e fazê-las, sabe, bater palmas. Para a música toda. Por isso não existem dois hits que soem iguais. Também por isso eles conseguem fazer o groove ficar mais forte deixando o tempo 4 mais alto que o tempo 2. Repare nisso.
E como havia sérias limitações de trilhas na época, você não empilhava palmas — você empilhava pessoas. É um som diferente daquele que você obtém colocando alguns membros exaustos da banda ao redor do microfone vocal no fim de uma longa sessão. (Vocês sabem quem são).
O baixo
O riff de MiniMoog que carrega tudo

Vamos ouvir o baixo. Ele carrega a música inteira. Ele É a música. Parece um MiniMoog para mim. Com o terceiro oscilador uma oitava abaixo dos outros dois. Está BEM SECO. Alguém tocou esse riff sem falhar por mais de 5 minutos seguidos. Não é incrível? Definitivamente foi gravado ao mesmo tempo que a bateria, como dá para ouvir em ligeiros momentos de push-pull que se mantêm unidos no final das seções. Groovy pra caramba.
A ponte e a falta de grave
Também adoro ouvir o grave da faixa inteira desaparecer na ponte porque o filtro do Moog e o EQ na mesa provavelmente estavam fixos e ajustados para o resto da música, então quando a ponte chega, o grave some. Repare nisso em 2:34 min.
Falando da ponte, esses são os únicos 8 compassos de toda a música em que o riff para e você ouve uma harmonia diferente. Os acordes também são divertidos. Repare neles.

O arranjo
Uma estrutura selvagem construída a partir de dois compassos
Estruturalmente, essa música é bem selvagem apesar de seu núcleo de 2 compassos.
Um hook de vocoder estéreo em 1981
Começamos com uma introdução de 8 compassos (Repare no hi-hat aberto em semicolcheia da introdução, sensacional) que apresenta o hook de vocoder característico. Em estéreo, nada menos. Quase inédito na época. A gente já sabe o que os pais do Daft Punk ouviam quando os capacetes eram crianças.
Overdubs e detalhes fortemente panoramizados
Repare também como o hi-hat está dez vezes mais alto na introdução do que no resto da música. Preste atenção em todos os brinquedos de percussão (bell tree, lâminas metálicas) que acontecem panoramizados à esquerda e à direita.
Também há muitas trilhas de synth distintas. É realmente complexo. Cordas atacam à esquerda por volta do compasso 5, um arpejo ascendente estranho introduz o ataque dos metais na direita e um descendente o fecha, alguma coisa reverberada de nota única e com timbre metálico à esquerda e SIM — um synth riser na direita no compasso #8. Oolala. Larry Dunn! 30 anos à frente. Acho que o Rhodes está dobrando o riff principal muito baixinho no meio também.
O primeiro refrão (ou assim pensamos)
Depois entramos no, bem, refrão eu acho. Diz “Let’s Groove”. É grande, tem o riff, uma linha de metais matadora e soa como um refrão nas vozes. Deve ser o refrão. Estabelece a cor principal do arranjo. Pocket reto na bateria, overdubs de percussão+palmas, riff de baixo, Rhodes tocando os acordes no meio, guitarra tocando acordes rítmicos à esquerda (mixada bem baixinho) e os metais pontuando tudo.
Construção A/B de versos com falsete e voz de peito
Após 8 compassos chegamos, ah bem, numa parte que diz “Let us groove, get you to move” em falsete. Parece um verso. Vocoders desaparecem, guitarra sobe, o resto é igual, sim, isso é um verso. Certo? Repare na pontuação com shaker em colcheia à direita.
Ah sim, essa foi definitivamente a parte A de um verso A/B, já que os próximos 8 compassos continuam com exatamente o mesmo arranjo, mas com Maurice White assumindo no lugar de Philip Bailey, cantando em voz de peito sobre a mesma música. (Exceto pelas pequenas intervenções do Rhodes lá no alto aqui e ali. Divertido).
O ritmo melódico define as seções
Em seguida vem mais 8 compassos do mesmo arranjo. Mas a voz principal muda o modo e faz parecer uma parte C. Ou talvez uma pré-ponte. Repare no efeito Swoooosh selvagem à esquerda. Loucura para 1981. Repare como a melodia vocal alivia o tédio e define seções quando a seção rítmica e os instrumentos permanecem os mesmos. White mudou o ritmo melódico para conseguir isso. Na parte do falsete e na primeira parte em voz de peito a melodia começa no tempo 2 do primeiro compasso. Nesta nova seção ela tem um pickup e aterrissa forte no tempo 1. Simples e eficaz para despertar as pessoas.
Um verso que parece um refrão
Depois vem a parte do falsete outra vez. Ah. Então, o que está acontecendo? Mais um A de uma seção verso A/B? Difícil dizer. Meio que soa como um refrão, não acha? É interessante como diferentes seções de uma música parecem dependendo do que vem antes e depois delas. Esta tem 8 compassos.
Dois versos seguidos
E flui para a parte em voz de peito. Certo. Então temos 2 versos seguidos. Parte em falsete, seguida pela parte em voz de peito, seguida por uma espécie de pré-refrão, todas com 8 compassos. O fato de o primeiro pré-refrão falhar em sua missão de nos levar a um refrão não vai nos impedir de seguir em frente de cabeça erguida. Tudo bem no mundo da estrutura clássica de pop.
Esperando um refrão? Não.
Então, depois desses dois belos versos, nossos corpos inteiros estão prontos para o refrão. Lá vem ele, preparados. Não.
Mais uma parte em falsete. Tragédia. Sem refrão. O que está acontecendo? Outro verso? Só o tempo dirá. Seria ousado. Ter três versos de 24 compassos seguidos com arranjos seriamente similares soa como receita para um sono. A menos que você tenha letras seriamente cativantes, é claro, mas não esqueçamos que ela está out of sight AND alright. Essa história não vai pra nenhum lugar empolgante.
Uma seção repetida para se tornar o refrão
Depois de 8 compassos disso atingimos o ponto de virada da música. Isso não é um verso, agora está atuando como um refrão por ser repetido, exatamente como é, por outros 8 compassos.
Uma música escrita a partir de um jam
Para mim, isso é outro sinal de que essa música não foi escrita por alguém sentado e derramando o coração, escrevendo e reescrevendo até conseguir uma joia de canção, arrumadinha e bonita com uma mensagem profunda e mudanças exóticas em Mi menor. Parece-me que a troca provavelmente foi mais ou menos assim:
Maurice: Larry, qual foi aquele riff que você acabou de tocar?
Larry: Qual?
Maurice: você fez algo tipo la, la laaa, la la la lalala.
Larry: Não faço ideia. Eu estava só testando, o synth Moog acabou de cair.
Maurice: Foi sensacional. Toca de novo.
Larry: O que foi? Isso aqui?
Maurice: Não, em E, é melhor pra mim e pro Phillip. Phillip, o que acha?
Phillip: Gosto, vamos groovear isso hoje à noite quando o Roland voltar do corte de cabelo.
Maurice: bom título, “Let’s groove on it tonight.” Escreve aí em algum lugar ou vamos esquecer.
Etc, etc, etc…
Então vem a ponte de 8 compassos. Reforçando a percepção do falsete como refrão ao colar a ponte logo depois.
Depois voltamos para a reprodução da introdução, primeira vez que ouvimos o vocoder desde o começo. 8 compassos.
A seguir, o que pensávamos ser o refrão até o verso começar a soar como um refrão.
Depois um break de metais/dança de 16 compassos.
Depois o refrão em falsete por 8 compassos.
Depois algum híbrido do refrão em falsete com nossa parte C/pré-refrão por 8 compassos
Volta uma parte de 8 compassos em falsete com alguns adlibs de Maurice White
Depois mais 8 compassos do refrão falsete / parte C.
Depois um break instrumental de 8 compassos
Volta o refrão em falsete e fade.
Uma estrutura que nunca passaria hoje
Isso NUNCA voaria no rádio pop se a música saísse hoje. Os programadores de rádio com ADD mandariam a música de volta à gravadora e solicitariam um “radio edit” do produtor. Um radio edit é quando toda música ganha um corte curto em vez do seu corte original. Acontece todo dia. Com bandas muito grandes. Mas isso é outra discussão.

Já está perdido?
A conclusão aqui é que temos uma música muito, muito, muito bem-sucedida que tem partes que mudam de função conforme você avança na música, tem 5:39 de duração e não se encaixa em nenhum molde. Refrescante, né?
Gostaria de chamar sua atenção para mais alguns detalhes que mostram a visão incrível e a qualidade visionária de Maurice White e do Earth Wind & Fire como um todo.
Detalhes visionários de Maurice White
A parte vocal empilhada “Pa Pa Pa”
Avance até a re-introdução em 2:49. Se você prestar atenção, ouvirá uma parte vocal que vai pa pa pa pap começando no primeiro tempo da reintro. Já tinha ouvido isso antes? Não, né? Repare no padrão. Parece vozes multitrackadas, empilhadas. Provavelmente bounced várias vezes para conseguir o som empilhado.
Camadas ocultas que mantêm a música viva
Agora repare na seção seguinte. Ainda está lá. Está quieta, mas está lá e deixa a parte muito rica.
Agora ouça o refrão em 2:11. pa pa pa. Mais brilhante que na reintro. Você tinha percebido isso? Vale a pena passar e checar todas essas pequenas intervenções. Elas fazem a composição de um acorde funcionar. Há TANTO acontecendo que é quieto e cria excitação sem tirar a qualidade hipnótica do clima de riff único.
Hooks de synth que retornam e guitarra estéreo
Como as partes de intro de synth que voltam no “falso refrão” após a reintro.
Ou como a guitarra fica estéreo no meio do break de metais. (Provavelmente abriu-se uma trilha naquele momento já que não há vocais)
Duas seções de metais, duas reverbs
Ou como a seção de metais é na verdade duas seções de metais, uma à esquerda, outra à direita, tratadas com tipos diferentes de reverb.
Centenas de pequenas intervenções vocais
E TODAS as pequenas intervenções vocais. Você provavelmente poderia ouvir a faixa 10 vezes e notar novidades a cada vez. Algumas das minhas favoritas são a harmonia “all right” bem antes da ponte em 2:32, o poooow adicional na reintro e no 2º “falso refrão” e o falsete pré-Prince “Oh-oo-Oh” envolvendo os refrões na quantidade certa de açúcar.
O que é esse som em 5:05?
E o que exatamente é aquela coisa em 5:05 à esquerda?
Produção impossível com a tecnologia de 1981
Isso é um trabalho incrível. Seria incrível hoje. É sobrenatural considerando a tecnologia com que eles tinham para trabalhar na época. Consegue imaginar a sessão de mixagem? (Dá para notar que provavelmente foi feito em passes, e que houve trabalho manual envolvido pelos adlibs super altos de Maurice White em 4:42, ops)
Considerações finais
Essa faixa é atemporal e inspirou gerações de músicos por bons motivos. (Talvez valha a pena ouvir Uptown Funk, gravadora do ano no Grammy 2016, com Let’s Groove em mente)
Parece simples, mas como você viu é na verdade bastante complexa. Prova sem erro que não há nada de errado com uma música de um riff só e uma estrutura louca se ela groovar tanto assim, especialmente porque podemos boogie down, down, upon down, the boogie down, down, upon down, the boogie down, down, upon down, the boogie down, down, upon down, the boogie down, down, upon down.
Fab Dupont